sexta-feira, 17 de maio de 2013

Muiraquitã


O som da queda d'água rebentando nas pedras era ensurdecedor. Nem mesmo o matraquear das barulhentas maritacas era capaz de sobrepujar o rugido do rio em queda.
A rocha nua precipitava-se para o abismo, solitária e estoica, moldada pelas mãos do vento a figurar eterna sobre o Olho de Jaci.
Esta observava de seu plano celeste, irradiando sua luz fria e prateada. Curiosa e indiferente aos perigos que aquela cerimônia encerrava. Ansiosa pelo resultado da provação a que suas escolhidas se dispunham a enfrentar.
As cinco meninas tensas, aguardavam a sacerdotisa terminar seu ritual em homenagem a grande deusa da noite, temerosas do que viria a seguir. Seus corações batiam descompassados e suas mentes trabalhavam em dolorida incerteza. Seus corpos estavam gélidos e úmidos pela aproximação cada vez mais certa do perigo.
- Oh! Jaci, minha mãe sagrada. Minha única guia pelas trevas da incerteza. Hoje estas cinco jovens corajosas curvam-se diante de Vossa vontade. Todas se provaram dignas aos olhos dos mortais. Mas somos crianças ingênuas e nada sabemos. Interceda, Senhora da Noite, e nos ajude a escolher a mais valente entre elas.
A Sacerdotisa cuja face estava marcada pelas lágrimas cerimoniais, ergueu seu corpo esquálido e aproximou-se das cinco meninas intimidadas.
- Jaci disse: Aquelas que desejam encontrar a verdade devem vir a mim. Abdicar de seus temores e confiar e minha misericórdia, pois só assim poderão tornar-se senhora de si. E o símbolo deste feito glorioso é esta Muiraquitã. - Disse estendendo o amuleto de jade em forma de sapo diante delas. A pedra reluziu magicamente a luz prateada da deusa. - Aquela que trouxer a tona o símbolo se sua coragem será a escolhida.
Afastou-se delas com passos decididos, estendeu o amuleto na direção da Deusa, para que esta o abençoasse e o atirou cachoeira abaixo.
- Que Jaci as guie e proteja em sua busca. Que afaste os anhangás que cruzarem seus caminhos e lhes dê força para resistir às provações que hão de surgirem.
Afastou-se da borda e sentou-se sobre as pernas, levando as mãos ao rosto para chorar copiosamente o destino daquelas cinco.
Três das meninas adiantaram-se, um passo vacilante em direção ao abismo. Ergueram seus rostos para a Deusa, pediram proteção, inspiraram fundo e desataram a correr em direção à borda. Uma delas saltou com confiança para bem longe. Outra o fez timidamente. E a terceira desistiu no instante final, caindo de joelhos e levando as mãos ao rosto, envergonhada.
As outras duas permaneceram estancadas onde estavam. Olhos arregalados, pernas trêmulas e corações palpitantes. Uma delas não conseguiu mais controlar seu pavor e fugiu na direção das matas. A outra permaneceu sacudindo-se como um arbusto agitado pelo vento. Buscando apoio a sua covardia nos sisudos rostos das Iniciadas. Encontrou apenas olhares de desprezo e indiferença.
Tomada pela certeza do que não gostaria de levar para o resto da vida, foi invadida por uma coragem que não acreditava possuir. Respirou profundamente e correu para o vazio. A garota que desistiu no último instante ainda estava à beira do abismo e a contemplou com admirada surpresa. Ela pode ver sua boca escancarada e os olhos arregalados, quando curvou o corpo para mergulhar em direção ao lago. Tão rápido quanto um instante, o mundo superior desapareceu e tudo o que lhe restou foi a longa e ansiosa queda. Sentiu-se livre como um pássaro, mas logo se lembrou de que não tinha asas. Gotículas de água gelada aderiam-se a sua pele nua enquanto ela despencava, nublavam sua visão e amplificavam o arrepio na espinha. Seu coração disparou ao perceber que o antes pequeno lago prateado agigantara-se diante dela como se prestes a devorá-la.
Fechou os olhos, prendeu a respiração e enrijeceu os músculos.
O impacto foi tão forte quanto cair de uma árvore diretamente no chão de pedra. Seu corpo inteiro parecia arder e gritar em dor lancinante entorpecendo lhe os sentidos de tal maneira que não conseguiu encontrar forças para uma reação imediata. Sentiu-se flutuando, serena, ouvindo ao longe o rufar de tambores de guerra.
Pouco a pouco seus sentidos começaram a retornar e a claridade prateada acima do véu de água borbulhante a fez despertar de seu torpor. Esperneou até a superfície e quando venceu a barreira d’água sugou o ar com toda força de seus pulmões. Ele entrou como uma chama, queimando-a por dentro e forçando-a a tossir toda a água que ingerira na queda. Lutou para permanecer boiando, buscou referências e então a viu.
Uma das meninas repousava de bruços, imóvel, numa das margens do lago. Seu braço direito pendia flácido de maneira pouco natural. A água em torno dela estava turva. Ainda mais assustada a jovem sobrevivente afastou-se, procurou ao redor qualquer pessoa para quem pudesse clamar por ajuda, mas encontrou apenas solidão. Não havia volta. Jaci a protegera durante o salto, agora era hora de retribuir a graça.
Inspirou profundamente, tomou impulso e mergulhou nas águas prateadas. Aos poucos foi abandonando o mundo de cores, sons e cheiros, enveredando pela imensidão densa e sombria. Esbarrando em algas e pequenos peixes, tentando encontrar a joia sagrada. Seu corpo clamava por descanso e por ar, mas ela não poderia se dar aquele luxo. Não conseguiria encontrar forças para mergulhar novamente se retornasse a superfície.
Quando suas certezas começavam a desvanecer e a ansiedade a dominar seu coração, vislumbrou um brilho prateado nas profundezas. Foi ligeiro, quase imperceptível, mas suficiente para lhe dar motivação. Utilizou-se das últimas reservas de energia para alcançá-lo. E então uma nova onda de pavor tomou conta dela.
Não fora o reflexo da muiraquitã que ela avistou, mas o brilho prateado da Lua nos olhos sem vida de sua outra companheira que, presa nos profundezas do lago, segurava a cobiçada joia com firmeza, seus longos cabelos negros e lisos pareciam tentáculos sombrios, desejosos por agarrar-se as criaturas vivas. Seu semblante eternizado em pavor sufocado.
A jovem sobrevivente tentou arrancar a jade das mãos da menina morta, mas os dedos estavam duros e gélidos como rocha. Forçou-os com ambas as mãos até que finalmente conseguiu libertar o amuleto. Rapidamente forçou-se a nadar para a superfície, sentiu a mão em garra do cadáver tocar-lhe o tornozelo, como se desejando impedi-la de escapar daquelas trevas abissais.
Seus músculos estavam falhando e ainda faltava muito até a superfície. Jaci tremulava na água agitada, quase um borrão prateado para além do infinito. “Só mais uma braçada...” – Pensou exausta. “Só mais uma braçada...”
E assim prosseguiu, para além do limite de suas forças, braçada por braçada, impulso por impulso, até que finalmente os sons retornaram com força, o útero sombrio do lago foi ultrapassado e o ar incinerou-a por dentro, forçando-a a gritar exasperada pela vida que teimava em perseverar.
Instintivamente ergueu o braço com a joia esverdeada o máximo que conseguiu. Sentiu as pernas fraquejarem, já não tinha mais forças. O Lago a estava chamando novamente e desta vez ela não teria forças para resistir.
Algo a apanhou pela cintura e a arrastou para a margem, fazendo seu franzino corpo deslizar por sobre a água rápido como uma lontra. Ela agarrou-se as raízes e engatinhou para fora do Espelho, gemendo alto a cada movimento. Quando finalmente ergueu o rosto, vislumbrou a sacerdotisa e as iniciadas que a contemplavam com sorrisos satisfeitos.
- Jaci está satisfeita. – Clamou a líder. – Erga-se Iraí.
Ela obedeceu, não prontamente, pois mal se aguentava de joelhos. Com as pernas bambas se manteve o tempo suficiente para ser consagrada. O colar com sua muiraquitã foi amarrado ao redor de seu fino e frágil pescoço e a sacerdotisa sorriu. – Iraí mergulho nas trevas, morreu e renasceu com a benção de Nossa Mãe Jaci. Iraí é agora o orgulho das Cunuipuiaras!
- Iraí é agora uma Icamiaba!

Nenhum comentário:

Postar um comentário