quarta-feira, 8 de maio de 2013

Inspiração Alada

Li certa vez que nossa memória é o pior souvenir de todos.
Talvez seja verdade, já que nunca temos certeza absoluta se aquela imagem gravada em nossa retina é de fato concreta ou fruto do implacável tempo que a tudo transforma ou deforma.
Entretanto, algumas lembranças, de tão fantásticas, imprimem-se em nossa mente como um carimbo, tornam-se tão nítidas quanto uma fotografia digital.

Tenho um problema sério de posicionamento temporal quando o assunto é o meu passado. Lembro-me das coisas, mas não exatamente da época que aconteceram. Para mim, a infância parece uma história em quadrinhos confusa, cheia de recortes disformes que nunca se encaixam propriamente. Fragmentos de uma vida que de tão distante, nem parece pertencer a mim.

Lembro-me bem da casa em que cresci, uma construção de 1926, sei disso porque a data estava gravada na fachada, bem alto em destaque e relevo. Era uma casa geminada, de pé direito altíssimo (Trocar lâmpadas era um tormento!), com sótão e porão; assoalho de ripas longas e firmes de madeira e forro de material semelhante. Todas as portas, a exceção da cozinha eram de folhas duplas, monumentais, assim como as janelas que possuíam pequenas gárgulas, que mais lembravam Moais da Ilha de Páscoa, do tamanho de um polegar, para evitar que o vento as batesse. Essas janelas, eram feitas de três folhas de madeira, presas umas as outras por dobradiças que proporcionavam um efeito sanfona muito prático para elas.
Os cômodos eram enormes. Quando vazios, chegavam a serem opressores. Tamanho espaço dispensava a necessidade de um ar condicionado, já que a casa fora construída para ser arejada. O quintal também era colossal. Palco de muitas brincadeiras, correrias e jogos, na época em que brincar era sinônimo de forçar o corpo ao limite e, assim, conhecê-lo de fato.

Filho único, dependia da solidariedade de meus muitos amigos e amigas para obter alguma companhia nas diversões, mas, como é próprio dos filhos únicos, não me assustava com a solidão. Na realidade, ela nos é a única real companheira. Só quem é filho único entenderá.

Quando impossibilitado de compartilhar meu tempo com amigos, o fazia buscando diversão sozinho, com meus brinquedos, que não eram muitos, porque brinquedos eram caros. Sempre tive uma predileção obsessiva por Legos, passava horas montando e desmontando aquelas pecinhas, criando todas as formas possíveis da vasta imaginação de uma criança. E me entristecia absurdamente quando dava por falta de uma peça. Era muito fácil perder quadradinhos de lego.

E foi em um desses lúdicos dias de minha infância solitária, em meu quintal grandioso, cercado pelas infindáveis plantas de minha mãe (algumas inclusive tóxicas e venenosas), que um encontro inusitado mudou minha perspectiva sobre o acaso e a solidão.

Compenetrado na construção de algum tipo de monstro de peças de lego para enfrentar meus bonecos prediletos, sequer me atentei para sua a aproximação. Não foi a sombra majestosa ou o som de sua chegada que me alertou de sua presença, mas o delicado deslocar do ar atingindo minhas costas. Quando me virei... Ah! Quando me virei.

Estava ela a me encarar, com seu semblante sisudo, os olhos amarelos de grande pupilas hipnotizantes  ainda com as asas abertas, equilibrando-se do pouso repentino. Era grande e branca, com manchas negras nas fimbrias de suas penas. Possuía orelhas. E garras poderosas arranhavam o chão de cimento avermelhado.

Não lembro o que pensei. Acho que nada pensei. Foi um momento contemplativo, sublime, em que o tempo para, em que esse opressor tirano que é nosso cérebro entra em pane, completamente rendido. A criatura alada rearranjou-se em posição firme, ereta, quase aristocrática; e permaneceu a me fulminar com seu olhar severo. Girou sua cabeça para lá e para cá, curiosa com o ambiente ao seu redor, interessada naquele mundo desconhecido em que mergulhara.

Aos poucos meus pensamentos começaram a retornar e lembro-me bem da primeira coisa que atravessou minha mente. "Ninguém vai acreditar!" Fosse hoje, poderia ter delicadamente retirado o celular do bolso e fotografar a Coruja visitante para depois pavonear-me para todos os meus amigos. Mas naquela época celular era um sonho. Celular com câmera, coisa de ficção científica.

Não sei quanto tempo durou nosso encontro. Após algum tempo ela abriu as asas, tomou impulso e partiu. Invejei-a, como ainda hoje a invejo, por sua irrestrita liberdade. Ela voou pelo céu azul sem nuvens até desaparecer entre os prédios distantes. 

Tornei a vê-la em outras ocasiões, no alto de uma antena numa grande construção bem ao fundo de minha casa. Era apenas um borrão claro contra o céu escuro nas noites enluaradas. Mas eu sabia que era minha coruja. Fiz de tudo para atraí-la novamente. Deixei carne no quintal e me escondi, mas só os gatos vadios das redondezas apareceram para roubar minha infantil armadilha. Um dia ela simplesmente não apareceu mais. Contudo, nosso encontro marcou profundamente minha vida. Pois tomei consciência de que nunca estamos realmente sozinhos. 

E também tornei-me um apaixonado por corujas. Em certa ocasião briguei com um colega de escola, por ele ter arremessado um coquinho numa coruja buraqueira.

A devoção é tanta, que criei esse blog.

Mas por que então nossas memórias são os piores souvenires? Outro dia voltei àquela casa. E percebi que nada era tão grandioso como me lembrava. Ela era alta sim, mas o quintal não era colossal, os cômodos não eram opressores e a distância entre meu quintal e aquela antena onde a coruja pousava nem era tão longa . 

Talvez também minha coruja não fosse tão bela... Mas isso eu não tenho como comprovar...

Ainda bem.



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