quarta-feira, 27 de março de 2013

Cenas do Cotidiano

Diante da janela de meu escritório há um poste. 
E neste poste há um vão, permeado de fios de alta tensão.
Neste vão, há um ninho de rolinhas-de-asa-canela, daquelas cinzentas, bem simplórias e abundantes.
O ninho não é nada bonito de se ver. Nada de galhos sequinhos, castanhos, bem arrumadinhos como aqueles de filme. É uma coisa escura, amassada, com aspecto de sujo...
Imundo seria a palavra correta.


Com frequência me pego a observar o cotidiano desses pássaros e me surpreendo tirando lições de vida daquele pitoresco cenário.
O ritual de corte e aceitação do casal chega a ser engraçado. Depois de arrulhar com o peito estufado, exibindo seu orgulhoso vigor, o macho voa para o ninho e senta com o rabo empinado como se dissesse:
- Atrai sua atenção bela rolinha, agora veja. Além de vigoroso, eu também sou bem sucedido. Veja que ninho aconchegante eu construí para nós dois.
A rolinha fêmea aproxima-se cautelosa. Salta pra lá, salta pra cá e por fim salta no ninho. Cisca ali, cisca acolá. Como se respondesse: - É... Não está de todo mal... Da pro gasto.
O macho animado fica remexendo suas asas imaginando que já ganhou, mas ai é que começam as surpresas.
Sua paquera pisa, pula, bica, unha... Faz o diabo com ele. Importuna um montão. 
- Comigo é assim! - Diz ela enquanto monta sobre ele sem piedade. - Se me quer vai ter que aguentar meu temperamento. Vai ter que fazer o que eu quero! Me obedecer e me paparicar! E sem reclamar!
E sem reclamar o macho permanece estoico. Suportando a humilhação e todas as súbitas mudanças de humor de seu novo amor.
Ela então se afasta. Finge que vai embora. Faz charme.
O macho permanece em sua obstinada posição de submissão, certamente inseguro sobre as reais intenções da rolinha orgulhosa.
Comovida ou convencida pela força do amor do pobre macho ela retorna para o ninho em rápidos pulinhos animados. Aconchega-se ao lado dele e assim permanecem por algum tempo trocando olhares carinhosos. Por fim, conquistada, ela permite afinal que o resiliente namorado conquiste seu prêmio.
Nos dias seguintes estão sempre juntos. Empoleirados nos fios, lado a lado, trocando "carícias", catando piolhos ou simplesmente observando os estranhos humanos que nunca param de correr pra lá e pra cá.

Tempos depois surgem os ovos no ninho. Normalmente dois, raramente três. Revezam-se no cuidado com as futuras crias. E, como era de se esperar, a fêmea é bem mais cuidadosa. Ela nunca deixa o ninho antes que seu desleixado consorte retorne. O mesmo não se pode dizer do galanteador macho, que vai e vem quando lhe da na telha. 

Falta de perigos não há. Pois os terríveis bem-te-vis vivem a espreita, prontos para assaltarem o ninho do casal. Rolinhas-de-asa-canela, não são pássaros agressivos, mas são obstinados. Muito mais do que os bem-te-vis arruaceiros.

A fase de chocar é curta. E com ela parece terminar o chamego do casal. 
Os filhotes chegaram. Coisas horríveis, quase cegas, depenadas e com bocarras escancaradas, insaciáveis em sua fome, que sugam dos pais tudo o que podem. Vai a fêmea, vem o macho e vice versa, numa ponte aérea sem fim para alimentar os monstrinhos.
Crescem rápido essas pestinhas! Sua aparência melhora um pouquinho. Mas o ninho se torna uma anarquia. Sujeira pra todo lado, penas que caem, comida pelo chão, um horror!
Os pais agora não são nem a sombra daquelas belas e joviais rolinhas de meses atrás. Parecem velhos e cansados. Pouco se vêem, a família raramente está reunida.
Um dos irmãos cresce mais forte, porque é mais esperto e agressivo. Destaca-se, torna-se um(a) (pois me é impossível discernir o sexo nessa fase) rolinha vigorosa. Seu irmão(a) cresce devagar, está sempre amuado. É triste de ver. Os pais até tentam animá-lo, mas sabem que não vai vingar. Algumas vezes seu cadáver permanece no ninho até que um deles venha atirá-lo para o chão distante onde caminham os apressados humanos. Outras vezes o próprio filhote distraído cai e morre. Com apenas uma bocarra faminta para alimentar os pais retomam o viço e seu filho único cresce ainda mais rápido.

Logo se torna um adolescente irrequieto,  incapaz de pacientemente permanecer no ninho a espera do retorno dos pais. Vai explorar o mundo, caminhando pelos fios arriscando-se, descobrindo seus limites. Quer voar, balança as asas, mas sabe que não tem o que é necessário.

Enfim chega a hora de partir. Seus pais parecem incentivá-lo, deixam-no com fome. Ficam do outro lado do poste forçando-o a abandonar a segurança de sua zona de conforto.
Um dia ele(a) salta e vai embora.

O ciclo recomeça. 
Não sei se o casal é o mesmo pois, para mim, humano ignorante, todas elas parecem iguais.
Por vezes as vejo me observando através do vidro, com seus grandes olhos negros e curiosos. Imagino o que devem estar comentando:
- Estranhos esses humanos... Sempre tão apressados. Sempre tão sozinhos. Sentados diante da caixa iluminada dedicando sua vida a ela.
- Devem ser os ovos deles. - Comenta o macho senhor de si. - Todos os dias eles vêm e ficam horas cuidando dessas coisas. Quando elas quebram, nascem mais humanos apressados. Daqueles pequenos, horríveis e assustadores, que gritam e correm atrás da gente.
- Sim. - Concorda sua consorte. - Pobres humanas... Não deve ser nada fácil botar essa coisa.

Um comentário:

  1. Adorei o texto. A singeleza com que apresenta a rica observação do cotidiano. A maioria dos "humanos ignorantes" (ou apressados e atoleimados em suas rotinas), não possuem essa sensibilidade e não podem descrever com tanta poesia um acontecimento "corriqueiro" como este. Lindo! Um abraço!
    Lêda Monge

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