segunda-feira, 18 de março de 2013

Tarachina

- É!
- Não é! – Rebateu a pequena Naara.

A discussão se arrastava por horas e as crianças estavam prestes a pular uma no pescoço da outra e rolar pelo chão. Naara tinha certeza de que se chegasse a esse ponto, levaria uma bela surra, já que Aracaê, apesar de ter a mesma idade que ela, era bem mais forte.
Subitamente afastaram-se ao ouvir o sinistro som proveniente da mata a sua frente e por pouco não dispararam aos berros rumo a aldeia quando o homem velho, feio e fedorento surgiu por entre as folhagens pitando seu cachimbo e espalhando fumaceiro.

- Mas que nhenhenhém é esse aqui? – Perguntou o velho pajé errante com sua voz áspera e cansada. – Do jeito que vocês gritam pensei se tratar de anhangá ruim. O que dói em vocês crianças?
Assustadas com a inesperada aparição deixaram as rivalidades de lado e de olhos bem arregalados na figura do curandeiro buscaram algo para dizer em sua defesa. Nada veio. Por fim, Naara, mais desinibida, confessou a verdade.

- Discutíamos senhor pajé, porque Aracaê é teimoso e não aceita que está errado!
- Mentira! – Rebateu. – Naara que não sabe nada e insiste no erro!
- Ah! – Proferiu o pajé esboçando um sorriso satisfeito. – Então a dor de vocês é muito séria. E o remédio é complicado. – Diante dos semblantes confusos das crianças o pajé prosseguiu. – É dor de orgulho. Difícil de sarar. Mas... Porque discutiam? – Perguntou se achegando diante delas, sentando sobre as pernas e deixando sua tralha toda ao lado.

- Aracaê insiste em dizer que foi Tupã e não Namandú que criou o Pindorama!
- Mas foi!
- Não foi!
- Eya! Eya! – Gritou o pajé silenciando-as. – Que esse remédio eu conheço bem. Sentem-se crianças. Deixe-me explicar, por que vocês estão acometidas por um anhangá ruim, que as está confundindo. – Ante a menção de anhangá, ambas sentaram-se de pronto. – Assim está bom. – Pigarreou e começou sua narrativa:

 No começo tudo era uma grande bagunça... Tarachina. Uma névoa que não esvanecia. Que não ia nem vinha. Coisa boa nem ruim.
Nosso Grande Pai, Namandú, resolveu criar-se, pôr ordem no que não era. Mas ele não surgiu e pronto, feito assim que nem vocês e eu. Não... Primeiro ele fincou seus pés na Tarachina, igual árvore faz com a terra, fixou-os bem para que pudesse crescer forte. Depois estendeu seus braços de onde surgiram muitos dedos e unhas que a tudo tocam e que a tudo alcançam. De sua cabeça, nasceram folhas e flores que adornavam e perfumavam tudo ao seu redor e por fim ergueu-se vigoroso, grande e forte como um Jequitibá. E cresceu e cresceu até ficar tão grande que não cabia mais em lugar nenhum e de onde tudo podia ver.
Então, seu coração, puro e poderoso, iluminou-se, iluminou tanto que dissipou toda a Tarachina e quando nenhuma névoa mais restava, ele proferiu sua poderosa Ayvú! Sua palavra forte como o trovão. E com ela criou outros deuses para ajudá-lo, pois se sentia só.

- Ele os criou como? – Quis saber Naara
- Ele os criou com Ayvú. A palavra. Ele falou sua poderosa Ayvú e dela nasceram quadro deuses para ajudá-lo. Da pureza de sua Ayvú nasceu Nanderu py’a guassu, o pai de todas as palavras. Da energia de sua Ayvú nasceu Karaí, o deus da chama e do fogo. Da melodia de sua Ayvú, nasceu Yakairá, o pai das brumas e das sombras. E da força de sua Ayvú nasceu Tupã, o deus das chuvas, das águas e do trovão.

- E então Tupã criou o Pindorama! – Adiantou-se o impaciente Aracaê.
O velho pajé balançou a cabeça, criando um rastro de fumaça em torno de si. – Não. Porque não existia nada além deles nessa época. Não. Depois de criar seus amigos deuses, Namandú os chamou e disse que deveriam criar a terra. Pegou dois gravetos e os cruzou para formar a base. Então, para que os ventos não os soprassem para longe, colocou a terra por cima, mas faltava uma coisa importante.
Namandú pegou mais quatro gravetos e pediu para que seus quatro amigos deuses os segurassem. A Karaí pediu que segurasse o graveto no oeste. Entregou então o graveto para Yakairá e pediu para que o segurasse no sul. Para Nanderu py’a guassu entregou o graveto que deveria sustentar no norte e entregou o último a Tupã, que deveria seguir para o leste. A cada um deles, Namandú ordenou que fixassem seus gravetos e deles fizessem sua morada, e assim eles fizeram. E quando os quatro deuses estavam a postos, Namandú colocou o céu sobre a terra. Depois a cercou de água salgada, colocou plantas e flores para enfeitá-la.

Achou-a vazia e sem graça e por isso criou uma mboi, uma cobra; e soltou-a na terra. Gostou tanto de ver o bicho serpentear pelo mundo que criou outros animais e por fim, criou o homem.
- Viu! – Vangloriou-se Naara. – Foi Namandú e não Tupã que criou o Pindorama!

Sem abalar-se o pajé bafejou fumaça na direção da menina faladeira, que engasgou e tossiu, silenciando seu orgulho. – Este mundo criado por Namandú não era o Pindorama. Não. Esse mundo era Yvy Tenonde, a Primeira Terra. E estes homens criados por Namandú, não são nossos antepassados, pois que na Yvy Tenonde não havia dor nem medo, fome ou morte.

Acontece que Namandú ainda estava sentindo-se só. Então chamou seu amigo Nanderu e lhe disse que deveriam criar-lhe uma esposa. Os dois então trabalharam incansavelmente até que moldaram um grande jarro de barro e quando o terminaram fecharam-lhe a boca. Namandú proferiu sua Ayvú e quando destamparam, uma linda Deusa surgiu. Seu nome era Nandesy e ela seria a esposa de Namandú.

Mas Nandesy apaixonou-se também por Nanderu e incapaz de decidir, foi deitar-se na rede dos dois e com cada um deles gerou um filho. Ao descobrir a traição de sua mulher Namandú, muito chateado, foi para sua morada divina, longe de tudo e de todos, onde não há tempo nem vento, lá em Yvága.
Nandesy, entristecida por ser deixada só, foi a procura de seu marido para desculpar-se, mas não o encontrou. Em suas andanças por Yvy Tenonde acabou deparando-se com um terrível ygarete que a perseguiu e a devorou numa só bocada!

Naara fez cara de choro com o triste destino de Nandesy e tocado pela tristeza da amiga, Aracaê a abraçou. O pajé sorriu satisfeito e continuou:
Mas os filhos de Namandú e Nanderu eram imortais e os ygaretés não conseguiram digeri-los. Surpresos, levaram os bebês para a Avó Ygareté que, os reconhecendo como filhos dos Deuses, passou a criá-los com carinho. Eles chamavam-se Nanderyke’y, que era filho de Namandú e Tyvra’i, filho de Nanderu. Juntos, os dois meninos cresceram fortes e amigos, enfrentando uma série de provações e desventuras criadas por seu terrível tio Añá.

Quando finalmente conseguiram encontrar a entrada para Yvága, foram recebidos por seu pai, seus irmãos e também por sua mãe, pois Namandú perdoou Nandesy e a reviveu em sua morada divina. Feliz por reunir novamente a família, Namandú deu aos filhos um importante papel, a Nanderyke’y entregou o cocar de Karaí e renomeou-o Nanderu Kuarahy, Nosso Pai, o Sol. Ao seu outro filho Tyvra’i, deu o manto estrelado da noite e lhe chamou Nanderu Jasy: Nosso Pai, a Lua. E assim Namandú e sua família criaram o dia e a noite.

- E então Tupã criou o Pindorama? – Insistiu o impaciente Aracaê.
Não. Porque os primeiros homens cometeram uma ofensa terrível aos Deuses. Um homem, Jeupié levou sua tia para dormir em sua rede e os deuses enfurecidos decidiram libertar a fúria do Mba’e-megua guasu sobre todos eles! Um grande dilúvio que destruiu toda Yvy Temonde. Então, Namandú decidiu reunir-se com seus amigos deuses e juntos criaram outra Terra. Mas desta vez a fez imperfeita para que aqueles que sobreviveram ao Mba’e-megua guasu se lembrassem do que perderam e se lamentassem ao longo de muitos anos, até que os Deuses os perdoassem e lhes permitissem ir viver na Yvága. Essa é a nossa terra, a Yvy Pyahu.
- Mas e o Pindorama?! – Indagaram as crianças em uníssono.
O Pajé riu. Bateu a mão calosa e enrugada nas pernas finas e balançou a cabeça. Esse fica para outro dia. Está ficando tarde e seus pais estão preocupados. Vocês não querem ficar vagando por ai e terminar na barriga de algum ygareté, querem?

Prontamente as crianças levantaram-se e puseram-se a correr na direção da aldeia. Naara parou, preocupada com a possibilidade do velho pajé não conseguir acompanhá-los e virar presa de ygareté. Mas quando se virou, ele não estava mais lá. Só a fumaça de seu cachimbo que esvanecia lentamente.
Petrificada e confusa, nem percebeu quando Aracaê retornou e, cansado de tanto chamar por ela, pegou-a pela mão e puxou-a com firmeza de volta para casa.

Afinal ele não era nenhum Namandú para revivê-la caso um ygareté a pegasse.

3 comentários:

  1. Agora fiquei curiosa, vou ter que esperar as próximas postagens pra saber a origem de Pindorama! Belíssimo texto =)

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    1. Obrigado Édina. Em breve retornarei a narrativa da Pindorama.

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