- É!
- Não é! – Rebateu a pequena Naara.
A discussão se arrastava por horas e as crianças
estavam prestes a pular uma no pescoço da outra e rolar pelo chão. Naara tinha
certeza de que se chegasse a esse ponto, levaria uma bela surra, já que Aracaê,
apesar de ter a mesma idade que ela, era bem mais forte.
Subitamente afastaram-se ao ouvir o sinistro som
proveniente da mata a sua frente e por pouco não dispararam aos berros rumo a
aldeia quando o homem velho, feio e fedorento surgiu por entre as folhagens
pitando seu cachimbo e espalhando fumaceiro.
- Mas que nhenhenhém
é esse aqui? – Perguntou o velho pajé errante com sua voz áspera e cansada. –
Do jeito que vocês gritam pensei se tratar de anhangá ruim. O que dói em vocês crianças?
Assustadas com a inesperada aparição deixaram as
rivalidades de lado e de olhos bem arregalados na figura do curandeiro buscaram
algo para dizer em sua defesa. Nada veio. Por fim, Naara, mais desinibida,
confessou a verdade.
- Discutíamos senhor pajé, porque Aracaê é teimoso
e não aceita que está errado!
- Mentira! – Rebateu. – Naara que não sabe nada e
insiste no erro!
- Ah! – Proferiu o pajé esboçando um sorriso
satisfeito. – Então a dor de vocês é muito séria. E o remédio é complicado. –
Diante dos semblantes confusos das crianças o pajé prosseguiu. – É dor de
orgulho. Difícil de sarar. Mas... Porque discutiam? – Perguntou se achegando
diante delas, sentando sobre as pernas e deixando sua tralha toda ao lado.
- Aracaê insiste em dizer que foi Tupã e não
Namandú que criou o Pindorama!
- Mas foi!
- Não foi!
- Eya! Eya! – Gritou o pajé silenciando-as. – Que
esse remédio eu conheço bem. Sentem-se crianças. Deixe-me explicar, por que
vocês estão acometidas por um anhangá ruim, que as está confundindo. – Ante a
menção de anhangá, ambas sentaram-se de pronto. – Assim está bom. – Pigarreou e
começou sua narrativa:
No começo tudo
era uma grande bagunça... Tarachina.
Uma névoa que não esvanecia. Que não ia nem vinha. Coisa boa nem ruim.
Nosso Grande Pai, Namandú, resolveu criar-se,
pôr ordem no que não era. Mas ele não surgiu e pronto, feito assim que nem
vocês e eu. Não... Primeiro ele fincou seus pés na Tarachina, igual árvore faz
com a terra, fixou-os bem para que pudesse crescer forte. Depois estendeu seus
braços de onde surgiram muitos dedos e unhas que a tudo tocam e que a tudo
alcançam. De sua cabeça, nasceram folhas e flores que adornavam e perfumavam
tudo ao seu redor e por fim ergueu-se vigoroso, grande e forte como um
Jequitibá. E cresceu e cresceu até ficar tão grande que não cabia mais em lugar
nenhum e de onde tudo podia ver.
Então, seu coração, puro e poderoso, iluminou-se,
iluminou tanto que dissipou toda a Tarachina e quando nenhuma névoa mais
restava, ele proferiu sua poderosa Ayvú! Sua palavra forte como o trovão. E com
ela criou outros deuses para ajudá-lo, pois se sentia só.
- Ele os criou como? – Quis saber Naara
- Ele os criou com Ayvú. A palavra. Ele falou sua
poderosa Ayvú e dela nasceram quadro deuses para ajudá-lo. Da pureza de sua
Ayvú nasceu Nanderu py’a guassu, o pai de todas as palavras. Da energia de sua
Ayvú nasceu Karaí, o deus da chama e do fogo. Da melodia de sua Ayvú, nasceu
Yakairá, o pai das brumas e das sombras. E da força de sua Ayvú nasceu Tupã, o
deus das chuvas, das águas e do trovão.
- E então Tupã criou o Pindorama! – Adiantou-se o
impaciente Aracaê.
O velho pajé balançou a cabeça, criando um rastro
de fumaça em torno de si. – Não. Porque não existia nada além deles nessa
época. Não. Depois de criar seus amigos deuses, Namandú os chamou e disse que
deveriam criar a terra. Pegou dois gravetos e os cruzou para formar a base.
Então, para que os ventos não os soprassem para longe, colocou a terra por
cima, mas faltava uma coisa importante.
Namandú pegou mais quatro gravetos e pediu para que
seus quatro amigos deuses os segurassem. A Karaí pediu que segurasse o graveto
no oeste. Entregou então o graveto para Yakairá e pediu para que o segurasse no
sul. Para Nanderu py’a guassu entregou o graveto que deveria sustentar no norte
e entregou o último a Tupã, que deveria seguir para o leste. A cada um deles,
Namandú ordenou que fixassem seus gravetos e deles fizessem sua morada, e assim
eles fizeram. E quando os quatro deuses estavam a postos, Namandú colocou o céu
sobre a terra. Depois a cercou de água salgada, colocou plantas e flores para
enfeitá-la.
Achou-a vazia e sem graça e por isso criou uma mboi, uma cobra; e soltou-a na terra.
Gostou tanto de ver o bicho serpentear pelo mundo que criou outros animais e
por fim, criou o homem.
- Viu! – Vangloriou-se Naara. – Foi Namandú e não
Tupã que criou o Pindorama!
Sem abalar-se o pajé bafejou fumaça na direção da
menina faladeira, que engasgou e tossiu, silenciando seu orgulho. – Este mundo
criado por Namandú não era o Pindorama. Não. Esse mundo era Yvy Tenonde, a
Primeira Terra. E estes homens criados por Namandú, não são nossos
antepassados, pois que na Yvy Tenonde não havia dor nem medo, fome ou morte.
Acontece que Namandú ainda estava sentindo-se só. Então
chamou seu amigo Nanderu e lhe disse que deveriam criar-lhe uma esposa. Os dois
então trabalharam incansavelmente até que moldaram um grande jarro de barro e
quando o terminaram fecharam-lhe a boca. Namandú proferiu sua Ayvú e quando
destamparam, uma linda Deusa surgiu. Seu nome era Nandesy e ela seria a esposa
de Namandú.
Mas Nandesy apaixonou-se também por Nanderu e
incapaz de decidir, foi deitar-se na rede dos dois e com cada um deles gerou um
filho. Ao descobrir a traição de sua mulher Namandú, muito chateado, foi para
sua morada divina, longe de tudo e de todos, onde não há tempo nem vento, lá em
Yvága.
Nandesy, entristecida por ser deixada só, foi a
procura de seu marido para desculpar-se, mas não o encontrou. Em suas andanças
por Yvy Tenonde acabou deparando-se com um terrível ygarete que a perseguiu e a devorou numa só bocada!
Naara fez cara de choro com o triste destino de
Nandesy e tocado pela tristeza da amiga, Aracaê a abraçou. O pajé sorriu
satisfeito e continuou:
Mas os filhos de Namandú e Nanderu eram imortais e
os ygaretés não conseguiram digeri-los. Surpresos, levaram os bebês para a Avó
Ygareté que, os reconhecendo como filhos dos Deuses, passou a criá-los com
carinho. Eles chamavam-se Nanderyke’y, que era filho de Namandú e Tyvra’i,
filho de Nanderu. Juntos, os dois meninos cresceram fortes e amigos,
enfrentando uma série de provações e desventuras criadas por seu terrível tio
Añá.
Quando finalmente conseguiram encontrar a entrada
para Yvága, foram recebidos por seu pai, seus irmãos e também por sua mãe, pois
Namandú perdoou Nandesy e a reviveu em sua morada divina. Feliz por reunir
novamente a família, Namandú deu aos filhos um importante papel, a Nanderyke’y
entregou o cocar de Karaí e renomeou-o Nanderu Kuarahy, Nosso Pai, o Sol. Ao
seu outro filho Tyvra’i, deu o manto estrelado da noite e lhe chamou Nanderu
Jasy: Nosso Pai, a Lua. E assim Namandú e sua família criaram o dia e a noite.
- E então Tupã criou o Pindorama? – Insistiu o
impaciente Aracaê.
Não. Porque os primeiros homens cometeram uma ofensa
terrível aos Deuses. Um homem, Jeupié levou sua tia para dormir em sua rede e
os deuses enfurecidos decidiram libertar a fúria do Mba’e-megua guasu sobre todos eles! Um grande dilúvio que destruiu
toda Yvy Temonde. Então, Namandú decidiu reunir-se com seus amigos deuses e
juntos criaram outra Terra. Mas desta vez a fez imperfeita para que aqueles que
sobreviveram ao Mba’e-megua guasu se lembrassem do que perderam e se
lamentassem ao longo de muitos anos, até que os Deuses os perdoassem e lhes
permitissem ir viver na Yvága. Essa é a nossa terra, a Yvy Pyahu.
- Mas e o Pindorama?! – Indagaram as crianças em
uníssono.
O Pajé riu. Bateu a mão calosa e enrugada nas
pernas finas e balançou a cabeça. Esse fica para outro dia. Está ficando tarde
e seus pais estão preocupados. Vocês não querem ficar vagando por ai e terminar
na barriga de algum ygareté, querem?
Prontamente as crianças levantaram-se e puseram-se
a correr na direção da aldeia. Naara parou, preocupada com a possibilidade do
velho pajé não conseguir acompanhá-los e virar presa de ygareté. Mas quando se
virou, ele não estava mais lá. Só a fumaça de seu cachimbo que esvanecia
lentamente.
Petrificada e confusa, nem percebeu quando Aracaê
retornou e, cansado de tanto chamar por ela, pegou-a pela mão e puxou-a com
firmeza de volta para casa.
Afinal ele não era nenhum Namandú para revivê-la
caso um ygareté a pegasse.
Agora fiquei curiosa, vou ter que esperar as próximas postagens pra saber a origem de Pindorama! Belíssimo texto =)
ResponderExcluirObrigado Édina. Em breve retornarei a narrativa da Pindorama.
ExcluirLegal! rs
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